Coleção pessoal de MaryPalladino

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⁠⁠Colcha de retalhos

Vamos refazer nossa colcha de retalhos, trabalharemos juntas, mesmo estando separadas.
Você guardou suas agulhas? Espero que sim. Eu ainda tenho as minhas...
Vamos folgar as costuras até soltar as linhas que cruzam o tempo, desatar os nós delicadamente para não rasgar os tecidos que nos cobrem a pele. Abrir os pontos mais apertados pode ser tedioso, requer paciência, mas não arranque com os dentes, afrouxe até soltar.
Quando todos os retalhos estiverem livres, olharemos atentamente para recriar uma linda trama, então teceremos uma nova colcha para embalar nossos sonhos mais lindos.
Cada pedaço com sua importância, aproveitaremos tudo, até as partes mais desgastadas, pois sem elas ficariam buracos.
Vamos costurar pedaços e atar outros nós. Recontar nossa história sob as estampas da memória para não sermos esquecidas.
Se bater cansaço de costurar momentos, descansamos e depois recomeçamos novamente, temos muito pano e tempo para isso.
E quem sabe, quando enfim estiver pronta nossa nova colcha de retalhos, vamos nos estender sobre ela na areia da praia até o deitar do sol.
Abraçadas vamos ver o céu mudar de cor por entre as palhas de coqueiros, quando nossa pele descansadamente deslizar sobre o emaranhado de lembranças vamos sorrir, e olhando nos olhos uma da outra, nos orgulhar do que então seremos.
Você achou suas agulhas?

Para viver neste mundo
você deve ser capaz
de fazer três coisas:
ame o que é mortal;
o aperte
contra os seus ossos, sabendo
que a sua própria vida depende disso;
e depois, quando chega a hora de deixá-lo ir,
deixe-o ir.

⁠Quantas vidas vivi depois que te conheci, muitas de mim vagaram pelo subsolo das mais remotas lembranças a te procurar.
Das tantas mulheres que em mim surgiram, muitas sedentas morderam a própria carne em busca de ti, outras escreveram teu nome nas águas de um mar revolto.
Algumas vejo em mim, outras jamais conheci.
Às vezes, diante do espelho, vejo refletida na íris as que em mim habitam de mãos dadas a te proteger, envolvida no rufar de mil corações você dança.

⁠Estou em pedaços.
Pedaços de mim fazem coisas e a vida segue...

Saudade
Saudade é solidão acompanhada,
é quando o amor ainda não foi embora,
mas o amado já...
Saudade é amar um passado que ainda não passou,
é recusar um presente que nos machuca,
é não ver o futuro que nos convida...
Saudade é sentir que existe o que não existe mais...
Saudade é o inferno dos que perderam,
é a dor dos que ficaram para trás,
é o gosto de morte na boca dos que continuam...
Só uma pessoa no mundo deseja sentir saudade:
aquela que nunca amou.
E esse é o maior dos sofrimentos:
não ter por quem sentir saudades,
passar pela vida e não viver.
O maior dos sofrimentos é nunca ter sofrido

O corpo não é uma máquina como nos diz a ciência. Nem uma culpa como nos fez crer a religião. O corpo é uma festa.

A Mão e a Luva

Eu hoje comi um poema com pão
Seco
Ontem não fiz nenhuma refeição
Amanhã talvez uma sopa de letrinhas
Há dias que não brota poema algum
Acordo e mantenho o jejum
Até que anoiteça
Mas as palavras um dia brotam
Como água dos rios
Como chuva
Há poemas que caem
Há poemas que cabem
Como uma luva
E alimentam a alma.

Não Vou Mais Lavar os Pratos

Não vou mais lavar os pratos.
Nem vou limpar a poeira dos móveis.
Sinto muito. Comecei a ler. Abri outro dia um livro
e uma semana depois decidi.
Não levo mais o lixo para a lixeira. Nem arrumo
a bagunça das folhas que caem no quintal.
Sinto muito.
Depois de ler percebi
a estética dos pratos, a estética dos traços, a ética,

A estática.
Olho minhas mãos quando mudam a página
dos livros, mãos bem mais macias que antes
e sinto que posso começar a ser a todo instante.
Sinto.

Qualquer coisa.
Não vou mais lavar. Nem levar. Seus tapetes
para lavar a seco. Tenho os olhos rasos d’água.
Sinto muito. Agora que comecei a ler quero entender.
O porquê, por quê? e o porquê.
Existem coisas. Eu li, e li, e li. Eu até sorri.
E deixei o feijão queimar...
Olha que feijão sempre demora para ficar pronto.
Considere que os tempos são outros...

Ah,
esqueci de dizer. Não vou mais.
Resolvi ficar um tempo comigo.
Resolvi ler sobre o que se passa conosco.
Você nem me espere. Você nem me chame. Não vou.
De tudo o que jamais li, de tudo o que jamais entendi,
você foi o que passou
Passou do limite, passou da medida,
passou do alfabeto.

Desalfabetizou.
Não vou mais lavar as coisas
e encobrir a verdadeira sujeira.
Nem limpar a poeira
e espalhar o pó daqui para lá e de lá pra cá.
Desinfetarei minhas mãos e não tocarei suas partes móveis.
Não tocarei no álcool.
Depois de tantos anos alfabetizada, aprendi a ler.
Depois de tanto tempo juntos, aprendi a separar
meu tênis do seu sapato,
minha gaveta das suas gravatas,
meu perfume do seu cheiro.
Minha tela da sua moldura.
Sendo assim, não lavo mais nada, e olho a sujeira
no fundo do copo.
Sempre chega o momento
de sacudir,
de investir,
de traduzir.
Não lavo mais pratos.
Li a assinatura da minha lei áurea
escrita em negro maiúsculo,
em letras tamanho 18, espaço duplo.

Aboli.
Não lavo mais os pratos
Quero travessas de prata,
Cozinha de luxo,
e joias de ouro. Legítimas.
Está decretada a lei áurea.

⁠Quando eu era pequena pensava que pessoas só morriam em dias nublados,
dias de sol não eram feitos pra morrer.
Hoje foi um dia nublado
e por coincidência ou não,
eu morri um pouco.
Tenho morrido em dias de sol também, estou me despedindo de mim, de partes de mim.
Uma voz me diz ao ouvido "viva!"
Mas para viver, devo morrer primeiro. Serei como uma borboleta que faz o caminho inverso e retorna para o casulo.

Da calma e do silêncio


Quando eu morder
a palavra,
por favor,
não me apressem,
quero mascar,
rasgar entre os dentes,
a pele, os ossos, o tutano
do verbo,
para assim versejar
o âmago das coisas.

Quando meu olhar
se perder no nada,
por favor,
não me despertem,
quero reter,
no adentro da íris,
a menor sombra,
do ínfimo movimento.

Quando meus pés
abrandarem na marcha,
por favor,
não me forcem.
Caminhar para quê?
Deixem-me quedar,
deixem-me quieta,
na aparente inércia.
Nem todo viandante
anda estradas,
há mundos submersos,
que só o silêncio
da poesia penetra.

⁠⁠Fale comigo
Não importa se o amor passou
Se está com raiva
Se não me suporta mais
Se tem rancor
Fale comigo
O tema é irrelevante
Fale de algo banal
Da tua consulta médica
De um incidente no trânsito
Do que achou graça
Do sonho de ontem
Do sono de hoje
Dos calos nas mãos
Conta uma história tua
Fale sobre os teus dias
Se te magoei, o que te custou
Se foi desamor
Fale comigo
Despeje tudo em mim
Se for bom, breve, ruim
Não importa para mim
Basta que fale comigo num dia assim.

⁠⁠Tenho o olhar turvo,
coberto por uma neblina.
Enxergo por meio de sombras, silhuetas que dançam sem deixar que nada se forme com a clareza que a lucidez pede.
Às vezes, por um breve momento, consigo ver com nitidez aquilo que se esconde por baixo das camadas da ilusão.
E o que vejo, tão imutável, tão coeso, que em nada parece real.
Busco mais uma vez o véu que me cobre os olhos e embaçado volto a crer, não no que penso ser verdadeiro, mas na ilusão, que por indefinida não me cega com a luz da realidade.

⁠Quem, senão nós, poderá saber o que nos mata a fome?
Quem, senão nós, poderá saber o que vibra em mim e ressoa em ti?
Quem nos olha, não nos vê.
Somos incompreensíveis aos olhos de todos, eles não sabem da alegria que me toma o peito ao te ver sorrir, nem do zelo que naturalmente tenho por ti.
Não entendem cada confissão trocada em silêncio.
Não alcançam a dimensão do que somos, a parte incompleta que nos completa, que de ser tão imperfeita, não cabe em mais ninguém.
É nesse lugar nada perfeito, improvável no espaço e no tempo, que nos encontramos, para que escondidos dos julgadores possamos mergulhar no olhar um do outro e nos compreender.
Enlaçados num abraço que vibra num só corpo toda nossa verdade.

Não sei quem sou, que alma tenho.
Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo.
Sou variamente outro do que um eu que não sei se existe (se é esses outros)...
Sinto crenças que não tenho.
Enlevam-me ânsias que repudio.
A minha perpétua atenção sobre mim perpetuamente me ponta
traições de alma a um carácter que talvez eu não tenha,
nem ela julga que eu tenho.
Sinto-me múltiplo.
Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos
que torcem para reflexões falsas
uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas.
Como o panteísta se sente árvore (?) e até a flor,
eu sinto-me vários seres.
Sinto-me viver vidas alheias, em mim, incompletamente,
como se o meu ser participasse de todos os homens,
incompletamente de cada (?),
por uma suma de não-eus sintetizados num eu postiço.

⁠Mudar os caminhos
As músicas
Os livros
Os filmes
Fechar as fendas
Das sais
Dos pensamentos
Do coração
Trocar poemas por crônicas
Ignorar a lua
Dançar de olhos abertos
Não deitar na praia
Não lamber dedos de chocolate
E nunca, nunca mais
Me perder num sorriso

foi assim que você pensou que eu ficaria no mundo,
usando flores em meu cabelo negro,
sempre escondidas no emaranhado dos cachos
sempre escondidas no emaranhado do caos
de minha cabeça negra.

só você sabia quantas flores eu usava
porque agora eu já sei
que você dedicava as noites
à contagem. Deus não dorme
e você também não.

⁠Existe algo de estranho com as palavras, com o tempo, não cremos mais nelas. E se não houvesse palavras, nenhum signo linguístico para expressar o que pulsa dentro de nós? Teríamos mais fé nos olhos, boca, mãos, braços, pés, dedos. Todo corpo comunicaria e nossa memória não nos deixaria mais duvidar, porque veríamos desenhos na pele que falariam mais do que qualquer palavra dita, ou não dita. Não seria necessário tentar dizer algo porque existiriam pessoas que saberiam ler corpos e desenhar no chão...

Tempos difíceis exigem danças furiosas. Cada um de nós é prova disso.

Embriagai-vos!

Deveis andar sempre embriagados. Tudo consiste nisso: eis a única questão. Para não sentirdes o fardo horrível do Tempo, que vos quebra as espáduas, vergando-vos para o chão, é preciso que vos embriagueis sem descanso.

Mas, com quê? Com vinho, poesia, virtude. Como quiserdes. Mas, embriagai-vos.

E si, alguma vez, nos degraus de um palácio, na verde relva de uma vala, na solidão morna de vosso quarto, despertardes com a embriaguez já diminuída ou desaparecida, perguntai ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo o que foge, a tudo que gene, a tudo o que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntai que horas são. E o vento, a vaga, a estrela, o pássaro, o relógio vos responderão:

- É a hora de vos embriagardes! Para não serdes escravos martirizados do Tempo, embriagai-vos! Embriagai-vos sem cessar! Com vinho, poesia, virtude! Como quiserdes!

Beijar o mar na tua boca
Sentir o barulho das ondas nas tuas narinas quentes
Tua pele reflete o sol
Me iluminino toda em ti
Fechar os olhos
Morder
Grãos de areia entre os dentes
Mergulhar e me afogar
Em saliva e sal
Puxa e pulsa
Maré de desejos que vive em mim.