Coleção pessoal de kkla

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QUERER MESMO !

É difícil conseguir o que se quer. Só se torna menos difícil quando se
quer mesmo !

O navegador Amyr Klink, ao ser perguntado por um repórter sobre o que
sentia a respeito das pessoas que passam 30 anos trabalhando no mesmo
escritório, sentadas a vida inteira diante da mesma escrivaninha,
respondeu: "Inveja". Klink admira quem consegue ser feliz numa rotina
imutável e tediosa. Como ele não consegue, sai pelo mundo em busca de
desafios.

Foi uma resposta provocativa. Inveja é justamente o que nós, seres
confortavelmente acomodados, sentimos de Amyr Klink quando o vemos
excursionar por cenários glaciais de tirar o fôlego e fazendo a superação
dos seus medos a sua rotina. Qual o segredo desse cara, afinal, para
conciliar família e aventura ? A gente também adoraria essa vida, mas a
diferença entre ele e nós, acreditamos ingenuamente, é que ele tem
patrocínio para sua falta de juízo, enquanto que nós temos juízo de sobra e
dinheiro contadinho no final do mês.

Na verdade, nossa resignação é conveniente, já que realizar sonhos dá muito
trabalho. A única diferença entre ser um navegador e ser uma economista-que-
sonha-em-ser-um-navegador é que um quis mesmo. O outro não quis tanto
assim.

Para romper convenções, e arriscar-se no desconhecido, é preciso querer
mesmo. Querer mesmo escalar uma montanha, querer mesmo surfar uma onda
assassina, querer mesmo filmar um documentário na África, querer mesmo ser
correspondente de guerra, querer mesmo trabalhar na Nasa, só para citar
outras aventuras supostamente inatingíveis. Querer mesmo, em vez de apenas
querer, abre a cancela de qualquer fronteira, seja ela geográfica ou
emocional.

Antes de alcançar os pontos mais indevassáveis da Antártica a bordo de
barcos equipados com alta tecnologia, Klink remou bastante, não ficou em
casa mentalizando seu sonho. Querer mesmo significa abrir mão de uma série
de confortos, tomar muito chá de banco, ver inúmeras idéias darem errado
antes de darem certo. E, em troca, ser chamado de doido varrido.

Querer, a gente quer muita coisa. Mas quase sempre é um querer preguiçoso,
um querer que não nos impulsiona a levantar da cadeira, ainda mais quando
nosso projeto tem 0,5% de chance de sucesso. É difícil conseguiu o que se
quer. Só se torna menos difícil quando se quer mesmo. Pena que alguns só
querem mesmo é ser rico ou ser gostosa, para isso fazendo coisas muito mais
insanas do que faz Amyr Klink. O que todos deveriam querer, mas querer
mesmo, é fugir da mediocridade.

No interessante livro HOMEM LENTO, de J.M. Coetzee, há uma passagem que me marcou. É um confronto verbal entre o personagem principal do livro, um homem de mais de 60 anos que teve uma perna amputada depois de um acidente de bicicleta, e um garoto adolescente. Ambos estão no sombrio e decadente aparatamento do velho, que resmunga: "Eu fui ultrapassado pelo tempo. Este apartamento e tudo o que existe dentro dele foi ultrapassado pelo tempo". O garoto pergunta se ele não gosta de coisas novas. O velho (que nem é tão velho) responde: "Isso tudo um dia foi novo. Tudo no mundo um dia foi novo. Até eu fui novo. Na hora em que nasci, eu era a coisa mais moderna da face da terra".
Nada é tão moderno quanto nós ao nascermos. Sublinhei.
Prosseguindo o diálogo, o garoto então comenta, como quem não quer nada, que um dia foi visitar o avô para mostrar como funcionava um computador. O avô era bem velho e também tinha sido ultrapassado pelo tempo. Hoje fazia compras pela internet, enviava e-mails, recebia fotos.
"E daí?", pergunta o mal-humorado sem perna.
"Daí que dá pra escolher".
Eis uma frase, uma verdade, um verso: dá pra escolher. Todo dia, ao levantar da cama, eu procuro me lembrar: dá pra escolher. Nem eu nem você estamos jogados ao léu, nas mãos do destino. Não temos controle sobre tudo, mas dá pra escolher entre ter amigos ou viver recluso, dá pra escolher entre privilegiar um amor ou ter vários casos superficiais, dá pra escolher entre participar ativamente de um projeto que alavanque nosso bem-estar ou ficar de fora apenas criticando, dá pra escolher entre se refugiar num lugar tranqüilo ou aprender a lidar com o stress urbano, dá pra escolher entre levar a vida com bom-humor ou levar a vida na ponta da faca.
Tudo é uma escolha, inclusive ser velho ou ser jovem, e isto não se resolve apenas numa clínica de estética. Todas as nossas escolhas passam pelo estado de espírito. É ele que vai determinar se vamos viver uma vida mais simples ou mais complicada, mais solitária ou mais social, mais produtiva ou mais lerda. Dá pra escolher entre ser carnívoro ou vegetariano, entre fumar ou não, entre correr na praia ou ficar um pouco mais na cama, entre jogar paciência ou ler um livro, entre amores serenos ou amores turbulentos. Se a escolha será acertada, aí já é outro assunto, o futuro vai dizer. Pensando bem, acertos e erros nem estão em pauta aqui. O que importa é ter consciência de que ficar sentado esperando que a vida escolha por nós não é uma opção confortável como parece. Descansados da silva, vem o tempo e crau: nos ultrapassa.

Quindins na Portaria

Estava lendo o novo livro do Paulo Hecker Filho, Fidelidades, onde, numa de suas prosas poéticas, ele conta que, antigamente, deixava bilhetes, livros e quindins na portaria do prédio do Mario Quintana: "Para estar ao lado sem pesar com a presença". Há outras histórias e poemas interessantes no livro, mas me detive nesta frase , porque não pesar os outros com nossa presença é um raro estalo de sensibilidade.

Para a maioria das pessoas, isso que chamo de um raro estalo de sensibilidade tem outro nome: frescura. Afinal, todo mundo gosta de carinho, todo mundo quer ser visitado, ninguém pesa com sua presença num mundo já tão individualista e solitário. Ah, pesa... Até mesmo uma relação íntima exige certos cuidados. Eu bato na porta antes de entrar no quarto das minhas filhas e na de meu próprio quarto, se sei que está ocupado. Eu pergunto para minha mãe se ela está livre antes de prosseguir com uma conversa por telefone. Eu não faço visitas inesperadas a ninguém, a não ser em caso de urgência, mas até minhas urgências tive a sorte de que fossem delicadas. Pessoas não ficam sentadas em seus sofás aguardando a chegada do Messias, o que dirá a do vizinho. Pessoas estão jantando. Pessoas estão preocupadas. Pessoas estão com o seu blusão preferido, aquele meio sujo e rasgado, que elas só usam quando ninguém está vendo. Pessoas estão chorando. Pessoas estão assistindo a seu programa de tevê favorito. Pessoas estão se amando. Avise que está a caminho. Frescura, jura? Então tá, frescura, que seja.

Adoro e-mails justamente porque são sempre bem-vindos, e posso retribuí-los sabendo que nada interromperei do lado de lá. Sem falar que encurtam o caminho para a intimidade. Dizemos pelo computador coisas que face a face seriam mais trabalhosas. Por não ser ao vivo, perde o caráter afetivo? Nem se discute que o encontro é sagrado. Mas é possível estar ao lado de quem a gente gosta por outros meios. Quando leio um livro indicado por uma amiga, fico mais próxima dela. Quando mando flores, vou junto com o cartão. Já visitei um pequeno lugarejo só para sentir o impacto que uma pessoa querida havia sentido, anos antes. Também é estar junto. Sendo assim, bilhetes, e-mails, livros e quindins na portaria não é distância: é só um outro tipo de abraço.
Sinta-se abraçado.

A DESPEDIDA DO AMOR

Existe duas dores de amor. A primeira é quando a relação termina e a gente, seguindo amando, tem que se acostumar com a ausência do outro, com a sensação de rejeição e com a falta de perspectiva, já que ainda estamos tão envolvidos que não conseguimos ver luz no fim do túnel.

A segunda dor é quando começamos a vislumbrar a luz no fim do túnel.

Você deve achar que eu bebi. Se a luz está sendo vista, adeus dor, não seria assim? Mais ou menos. Há, como falei, duas dores. A mais dilacerante é a dor física da falta de beijos e abraços, a dor de virar desimportante para o ser amado. Mas quando esta dor passa, começamos um outro ritual de despedida: a dor de abandonar o amor que sentíamos. A dor de esvaziar o coração, de remover a saudade, de ficar livre, sem sentimento especial por ninguém. Dói também.

Na verdade, ficamos apegados ao amor tanto quanto à pessoa que o gerou. Muitas pessoas reclamam por não conseguir se desprender de alguém. É que, sem se darem conta, não querem se desprender. Aquele amor, mesmo não retribuído, tornou-se um suvenir de uma época bonita que foi vivida, passou a ser um bem de valor inestimável, é uma sensação com a qual a gente se apega. Faz parte de nós. Queremos, logicamente, voltar a ser alegres e disponíveis, mas para isso é preciso abrir mão de algo que nos foi caro por muito tempo, que de certa maneira entranhou-se na gente e que só com muito esforço é possível alforriar.

É uma dor mais amena, quase imperceptível. Talvez, por isso, costuma durar mais do que a dor-de-cotovelo propriamente dita. É uma dor que nos confunde. Parece ser aquela mesma dor primeira, mas já é outra. A pessoa que nos deixou já não nos interessa mais, mas interessa o amor que sentíamos por ela, aquele amor que nos justificava como seres humanos, que nos colocava dentro das estatísticas: eu amo, logo existo.

Despedir-se de um amor é despedir-se de si mesmo. É o arremate de uma história que terminou, externamente, sem nossa concordância, mas que precisa também sair de dentro da gente.

Feliz por nada...

Benditos os que conseguem se deixar em paz. Os que não se cobram por não terem cumprido suas resoluções, que não se culpam por terem falhado, não se torturam por terem sido contraditórios, não se punem por não terem sido perfeitos. Apenas fazem o melhor que podem.

(...) Particularmente, gosto de quem tem compromisso com a alegria, que procura relativizar as chatices diárias e se concentrar no que importa pra valer, e assim alivia o seu cotidiano e não atormenta o dos outros. Mas não estando alegre, é possível ser feliz também. Não estando “realizado”, também. Estando triste, felicíssimo igual. Porque felicidade é calma. Consciência. É ter talento para aturar o inevitável, é tirar algum proveito do imprevisto, é ficar debochadamente assombrado consigo próprio: como é que eu me meti nessa, como é que foi acontecer comigo? Pois é, são os efeitos colaterais de se estar vivo.

Se é para ser mestre em alguma coisa, então que sejamos mestres em nos libertar da patrulha do pensamento. De querer se adequar à sociedade e ao mesmo tempo ser livre. Adequação e liberdade simultaneamente? É uma senhora ambição. Demanda a energia de uma usina. Para que se consumir tanto? A vida não é um questionário de Proust. Você não precisa ter que responder ao mundo quais são suas qualidades, sua cor preferida, seu prato favorito, que bicho seria. Que mania de se autoconhecer. Chega de se autoconhecer. Você é o que é, um imperfeito bem-intencionado e que muda de opinião sem a menor culpa. Ser feliz por nada talvez seja isso.

Faça o que for necessário para ser feliz. Mas não se esqueça que a felicidade é um sentimento simples, você pode encontrá-la e deixá-la ir embora por não perceber sua simplicidade.

Não gosto da vida em banho-maria, gosto de fogo, pimenta, alho, ervas. Por um triz não sou uma bruxa.

O que é o amor? Mas é muito simples! O amor é tudo o que intensifica, amplia, enriquece nossa vida. Em direção de todos os cumes e de todos os abismos. O amor é tão pouco problemático quanto um veículo. Só há como problemática o condutor, os passageiros e a estrada.

Para atingir a grandeza, o homem deve necessariamente passar por sua própria pequeneza.

Viver é nos desviarmos incessantemente. E nos desviamos de tal maneira que a confusão nos impede de saber do que estamos nos desviando.

O possuir não existe, existe somente o ser: esse ser que aspira até ao último alento, até à asfixia.

Não é necessário sair de casa.
Permaneça em sua mesa e ouça.
Não apenas ouça, mas espere.
Não apenas espere, mas fique sozinho em silêncio.
Então o mundo se apresentará desmascarado.
Em êxtase, se dobrará sobre os seus pés.

É o melhor conselho que um amigo pode dar a outro: pare de fazer fantasias, sentir-se perseguido, neurotizar relações, comprar briga por besteira, maximizar pequenas chatices, estender discussões, buscar no passado as justificativas para ser do jeito que é, fazendo a linha "sou rebelde porque o mundo quis assim".

⁠Há entre mim e o mundo uma névoa que impede que eu veja as coisas como verdadeiramente são — como são para os outros.
Sinto isto.

A Morte Devagar

Morre lentamente quem não troca de ideias, não troca de discurso, evita as próprias Morre lentamente quem não troca de idéias, não troca de discurso, evita as próprias contradições.

Morre lentamente quem vira escravo do hábito, repetindo todos os dias o mesmo trajeto e as mesmas compras no supermercado. Quem não troca de marca, não arrisca vestir uma cor nova, não dá papo para quem não conhece.

Morre lentamente quem faz da televisão o seu guru e seu parceiro diário. Muitos não podem comprar um livro ou uma entrada de cinema, mas muitos podem, e ainda assim alienam-se diante de um tubo de imagens que traz informação e entretenimento, mas que não deveria, mesmo com apenas 14 polegadas, ocupar tanto espaço em uma vida.

Morre lentamente quem evita uma paixão, quem prefere o preto no branco e os pingos nos is a um turbilhão de emoções indomáveis, justamente as que resgatam brilho nos olhos, sorrisos e soluços, coração aos tropeços, sentimentos.

Morre lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz no trabalho, quem não arrisca o certo pelo incerto atrás de um sonho, quem não se permite, uma vez na vida, fugir dos conselhos sensatos.

Morre lentamente quem não viaja, quem não lê, quem não ouve música, quem não acha graça de si mesmo.

Morre lentamente quem destrói seu amor-próprio. Pode ser depressão, que é doença séria e requer ajuda profissional. Então fenece a cada dia quem não se deixa ajudar.

Morre lentamente quem não trabalha e quem não estuda, e na maioria das vezes isso não é opção e, sim, destino: então um governo omisso pode matar lentamente uma boa parcela da população.

Morre lentamente quem passa os dias queixando-se da má sorte ou da chuva incessante, desistindo de um projeto antes de iniciá-lo, não perguntando sobre um assunto que desconhece e não respondendo quando lhe indagam o que sabe.

Morre muita gente lentamente, e esta é a morte mais ingrata e traiçoeira, pois quando ela se aproxima de verdade, aí já estamos muito destreinados para percorrer o pouco tempo restante. Que amanhã, portanto, demore muito para ser o nosso dia. Já que não podemos evitar um final repentino, que ao menos evitemos a morte em suaves prestações, lembrando sempre que estar vivo exige um esforço bem maior do que simplesmente respirar.

É sempre
uma incógnita, portanto não vale a pena tentar fugir das decepções ou dos êxtases, eles nos assaltarão onde estivermos. Se você for uma garota boba como eu fui, acorde. Ninguém é muita areia pra ninguém. Pessoas aparentemente especiais se apaixonam por outras aparentemente banais e isso não é um trote, não é uma pegadinha, não é nada além do que é: um inesperado presente da vida, que todos nós merecemos.

Use-se para progredir na vida. Alguma coisa você já deve ter aprendido até aqui. Encoste-se na sua própria experiência e intuição, honre sua história de vida, seu currículo, e se ele não for tão atraente, incremente-o.
Use sua simpatia: convença os outros. Use seus neurônios: pra todo o resto.

Uma Oração para os Vivos - Martha Medeiros

Que honremos o fato de ter nascido, e que saibamos desde cedo que não basta rezar um Pai- Nosso para quitar as falhas que cometemos diariamente. Essa é uma forma preguiçosa de ser bom. O sagrado está na nossa essência, e se manifesta em nossos atos de boa-fé e generosidade, frutos de uma percepção profunda do universo, e não de ocasião. Se não estamos focados no bem, nossa aclamada religiosidade perde o sentido.

Que se perceba que quando estamos dançando, festejando, namorando, brindando, abraçando, sorrindo e fazendo graça, estamos homenageando a vida, e não a maculando. Que sejam muitos esses momentos de comemoração e alegria compartilhados, pois atraem a melhor das energias. Sentir-se alegre não deveria causar desconfiança, o espírito leve só enriquece o ser humano, pois é condição primordial para fazer feliz a quem nos rodeia.

Que estejamos sempre abertos, se não escancaradamente, ao menos de forma a possibilitar uma entrada de luz pelas frestas. Que nunca estejamos lacrados para receber o que a vida traz. Novidade não é sinônimo de invasão, deturpação ou violência. Acreditemos que o novo é elemento de reflexão: merece ser avaliado sem preconceito ou censura prévia.

Que tenhamos com a morte uma relação amistosa, já que ela não é apenas portadora de más notícias. Ela também ensina que não vale a pena se desgastar com pequenas coisas, pois no período de mais alguns anos estaremos todos com o destino sacramentado, invariavelmente. Perder tempo com picuinhas é só isso, perder tempo.

Que valorizemos nossos amigos mais íntimos, as verdadeiras relações pra sempre.

Que sejamos bem-humorados, porque o humor revela consciência da nossa insignificância – os que não sabem brincar se consideram superiores, porém não conquistam o respeito alheio que tanto almejam. Ria e engrandeça-se.

Que o mar esteja sempre azul, que o céu seja farto de estrelas, que o vinho nunca seja proibido, que o amor seja respeitado em todas as suas formas, que nossos sentimentos não sejam em vão, que saibamos apreciar o belo, que percebamos o ridículo das ideias estanques e inflexíveis, que leiamos muitos livros, que escutemos muita música, que amemos de corpo e alma, que sejamos mais práticos do que teóricos, mais fáceis do que difíceis, mais saudáveis do que neurastênicos, e que não tenhamos tanto medo da palavra felicidade, que designa apenas o conforto de estar onde se está, de ser o que se é e de não ter medo, já que o medo infecciona a mente.

Que nosso Deus, seja qual for, não nos condene, não nos exija penitências, seja um amigo para todas as horas, sem subtrair nossa inteligência, prazer e entrega às emoções que nos fazem sentir plenos.

A vida é um presente, e desfrutá-la com leveza, inteligência e tolerância é a melhor forma de agradecer – aliás, a única.

Vivemos cercados pelas nossas alternativas, pelo que podíamos ter sido.
Ah, se apenas tivéssemos acertado aquele número (unzinho e eu ganhava a sena acumulada), topado aquele emprego, completado aquele curso, chegado antes, chegado depois, dito sim, dito não, ido para Londrina, casado com a Doralice, feito aquele teste…
Agora mesmo neste bar imaginário em que estou bebendo para esquecer o que não fiz – aliás, o nome do bar é Imaginário – sentou um cara do meu lado direito e se apresentou:
- Eu sou você, se tivesse feito aquele teste no Botafogo
E ele tem mesmo a minha idade e a minha cara. E o mesmo desconsolo.
- Por quê? Sua vida não foi melhor do que a minha?
- Durante um certo tempo, foi. Cheguei a titular. Cheguei a seleção. Fiz um grande contrato. Levava uma grande vida. Até que um dia..
- Eu sei, eu sei… disse alguém sentado ao lado dele.
Olhamos para o intrometido… Tinha a nossa idade e a nossa cara e não parecia mais feliz do que nós. Ele continuou:
- Você hesitou entre sair e não sair do gol. Não saiu, levou o único gol do jogo, caiu em desgraça, largou o futebol e foi ser um medíocre propagandista.
- Como é que você sabe?
- Eu sou você, se tivesse saído do gol. Não só peguei a bola como me mandei para o ataque com tanta perfeição que fizemos o gol da vitória. Fui considerado o herói do jogo. No jogo seguinte, hesitei entre me atirar nos pés de um atacante e não me atirar. Como era um herói, me tirei… Levei um chute na cabeça. Não pude ser mais nada. Nem propagandista. Ganho uma miséria do INSS e só faço isto: bebo e me queixo da vida. Se não tivesse ido nos pés do atacante…

Ele chutaria para fora. Quem falou foi o outro sósia nosso, ao lado dele, que em seguida se apresentou.

- Eu sou você se não tivesse ido naquela bola. Não faria diferença. Não seria gol. Minha carreira continuou. Fiquei cada vez mais famoso, e agora com fama de sortudo também. Fui vendido para o futebol europeu, por uma fábula. O primeiro goleiro brasileiro a ir jogar na Europa. Embarquei com festa no Rio…
- E o que aconteceu? perguntamos os três em uníssono.
- Lembra aquele avião da VARIG que caiu na chegada em Paris?
- Você…
- Morri com 28 anos.
- Bem que tínhamos notado sua palidez.
- Pensando bem, foi melhor não fazer aquele teste no Botafogo…
- E ter levado o chute na cabeça…
- Foi melhor, continuou, ter ido fazer o concurso para o serviço público naquele dia. Ah, se eu tivesse passado…
- Você deve estar brincando.
Disse alguém sentado a minha esquerda. Tinha a minha cara, mas parecia mais velho e desanimado.
- Quem é você?
- Eu sou você, se tivesse entrado para o serviço público.
Vi que todas as banquetas do bar à esquerda dele estavam ocupadas por versões de mim no serviço público, uma mais desiludida do que a outra. As conseqüências de anos de decisões erradas, alianças fracassadas, pequenas traições, promoções negadas e frustração. Olhei em volta. Eu lotava o bar. Todas as mesas estavam ocupadas por minhas alternativas e nenhuma parecia estar contente. Comentei com o barman que, no fim, quem estava com o melhor aspecto, ali, era eu mesmo. O barman fez que sim com a cabeça, tristemente. Só então notei que ele também tinha a minha cara, só com mais rugas.
- Quem é você? - perguntei.
- Eu sou você, se tivesse casado com a Doralice.
- E..?
Ele não respondeu. Só fez um sinal, com o dedão virado para baixo.

Até onde conseguimos discernir, o único
propósito da existência humana é acender
uma luz na escuridão da mera existência.