Carlos Drummond de Andrade
É mais fácil conceber um anjo sob aspecto de pessoa que se pareça com ele do que como anjo propriamente dito.
O anônimo tem possibilidades infinitas de ação – se os famosos o permitirem.
Os cavaleiros do Apocalipse, apenas quatro, não dão conta do serviço.
O arquivo supre a falta de memória, lembrando o que desejávamos esquecer.
Até a cor do arrependimento desbota com o tempo.
Há uma hora propícia ao arrependimento: a da morte, quando já não é possível nos arrependermos dele.
A arte vivifica a humanidade e aniquila o artista.
A obra de arte é o resultado feliz de uma angústia contínua.
O artista não sabe que o mundo existe fora da arte; por isso atreve-se a criar.
A história das artes não registra os nomes de dois artistas geniais: o primeiro pintor e o primeiro escultor.
O artista plástico violenta a realidade para melhor ou para pior; é um terrorista bem ou malsucedido.
O avarento perfeito economiza a ideia de dinheiro evitando falar nele.
A aventura não está nos fatos exteriores, mas na capacidade de figurá-los e vivenciá-los.
O divertimento do aviador é andar de pé no chão.
O trabalho constitui ao mesmo tempo mais-valia e não valia, conforme o ângulo de que o consideramos.
O dia dos Namorados
para mim é todo dia.
Não tenho dias marcados
para te amar noite e dia.
O dia 12 de junho,
como qualquer outro, diz
(e disso dou testemunho)
que contigo sou feliz.
Um chamado João
João era fabulista?
fabuloso?
fábula?
Sertão místico disparando
no exílio da linguagem comum?
Projetava na gravatinha
a quinta face das coisas,
inenarrável narrada?
Um estranho chamado João
para disfarçar, para farçar
o que não ousamos compreender?
Tinha pastos, buritis plantados
no apartamento?
no peito?
Vegetal ele era ou passarinho
sob a robusta ossatura com pinta
de boi risonho?
Era um teatro
e todos os artistas
no mesmo papel,
ciranda multívoca?
João era tudo?
tudo escondido, florindo
como flor é flor, mesmo não semeada?
Mapa com acidentes
deslizando para fora, falando?
Guardava rios no bolso,
cada qual com a cor de suas águas?
sem misturar, sem conflitar?
E de cada gota redigia nome,
curva, fim,
e no destinado geral
seu fado era saber
para contar sem desnudar
o que não deve ser desnudado
e por isso se veste de véus novos?
Mágico sem apetrechos,
civilmente mágico, apelador
de precípites prodígios acudindo
a chamado geral?
Embaixador do reino
que há por trás dos reinos,
dos poderes, das
supostas fórmulas
de abracadabra, sésamo?
Reino cercado
não de muros, chaves, códigos,
mas o reino-reino?
Por que João sorria
se lhe perguntavam
que mistério é esse?
E propondo desenhos figurava
menos a resposta que
outra questão ao perguntante?
Tinha parte com... (não sei
o nome) ou ele mesmo era
a parte de gente
servindo de ponte
entre o sub e o sobre
que se arcabuzeiam
de antes do princípio,
que se entrelaçam
para melhor guerra,
para maior festa?
Ficamos sem saber o que era João
e se João existiu
de se pegar.
A moça ferrada
Falam tanto dessa moça. Ninguém viu,
todos juram.
Cada qual conta coisa diferente,
e todas concordantes.
Dizem que à noite, ela. Ela o quê?
E com quem? Com viajantes
que somem sem rastro
gabando no caminho
os espasmos secretos (tão públicos) da moça.
Sobe a moça
a ladeira da igreja
para a reza de todas as tardes.
De branco perfeitíssimo,
alta, superior, inabordável
(luxúria de mil-folhas sob o véu,
murmura alguém).
À noite é que acontecem coisas
no quarto escuro. Ganidos de prazer,
escutados por quem? se ninguém passa
na rua em altas horas-muro?
Pouco importa, a moça está marcada,
marca de rês na anca, ferro em brasa
de língua popular.
Toda história é remorso.
Nota: Trecho do poema museu da inconfidência.
...MaisQuantas toneladas exportamos
De ferro?
Quantas lágrimas disfarçamos
Sem berro?
Na TV, só teu retrato,
com teu número e teu nome.
Serás mesmo candidato
ou simples sombra que some?