Poemas de Cecília Meireles

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O vento é o mesmo.
Mas sua resposta é diferente em cada folha.
Aprendi com as Primaveras a me deixar cortar par poder voltar sempre inteira.

Cecília Meireles

Nota: Trecho do poema "Desenho"

Mulher ao espelho



Hoje que seja esta ou aquela,
pouco me importa.
Quero apenas parecer bela,
pois, seja qual for, estou morta.

Já fui loura, já fui morena,
já fui Margarida e Beatriz.
Já fui Maria e Madalena.
Só não pude ser como quis.

Que mal faz, esta cor fingida
do meu cabelo, e do meu rosto,
se tudo é tinta: o mundo, a vida,
o contentamento, o desgosto?

Por fora, serei como queira
a moda, que me vai matando.
Que me levem pele e caveira
ao nada, não me importa quando.

Mas quem viu, tão dilacerados,
olhos, braços e sonhos seu
se morreu pelos seus pecados,
falará com Deus.

Falará, coberta de luzes,
do alto penteado ao rubro artelho.
Porque uns expiram sobre cruzes,
outros, buscando-se no espelho.

Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.

Cecília Meireles
MEIRELES, C. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2001.

Nota: Trecho do poema "Retrato": Link

...Mais

Tudo é vivo e tudo fala ao nosso redor,
embora com vida e voz que não são humanas,
mas que podemos aprender a escutar,
porque muitas vezes essa linguagem secreta
ajuda a esclarecer o nosso próprio mistério.

Felicidade, és coisa estranha e dolorosa:
Fizeste para sempre a vida ficar triste:
Porque um dia se vê que as horas todas passam,
e um tempo despovoado e profundo, persiste.

Sei de um capitão pirata,
que é dono de um verde mar,
que tem seu barco de prata,
mas deixou de navegar.

Que se enamorou da terra,
que se entregou à prisão,
e entre quatro muros erra,
murmurando uma canção.

Chorarei quando for preciso...
Depois, tudo estará perfeito...
Meus olhos secos como pedra.

Cecília Meireles

Nota: Versão adaptada de trechos do poema "Canção": Link

ASSIM MORO em meu sonho:
como um peixe no mar.
O que sou é o que vejo.
Vejo e sou meu olhar.

Água é o meu próprio corpo,
simplesmente mais denso.
E meu corpo é minha alma,
e o que sinto é o que penso.

Assim vou no meu sonho.
Se outra fui, se perdeu.
É o mundo que me envolve?
Ou sou contorno seu?

Não é noite nem dia,
não é morte nem vida:
é viagem noutro mapa,
sem volta nem partida.

Ó céu da liberdade,
por onde o coração
já nem sofre, sabendo
que bateu sempre em vão.

Canção
No desequilíbrio dos mares,
as proas giram sozinhas...
Numa das naves que afundaram
é que certamente tu vinhas.

Eu te esperei todos os séculos
sem desespero e sem desgosto,
e morri de infinitas mortes
guardando sempre o mesmo rosto

Quando as ondas te carregaram
meu olhos, entre águas e areias,
cegaram como os das estátuas,
a tudo quanto existe alheias.

Minhas mãos pararam sobre o ar
e endureceram junto ao vento,
e perderam a cor que tinham
e a lembrança do movimento.

E o sorriso que eu te levava
desprendeu-se e caiu de mim:
e só talvez ele ainda viva
dentro destas águas sem fim.

Permite que eu volte o meu rosto
para um céu maior que este mundo,
e aprenda a ser dócil no sonho
como as estrelas no seu rumo.

HUMILDADE

Tanto que fazer!
livros que não se lêem, cartas que não se escrevem,
línguas que não se aprendem,
amor que não se dá,
tudo quanto se esquece.

Amigos entre adeuses,
crianças chorando na tempestade,
cidadãos assinando papéis, papéis, papéis...
até o fim do mundo assinando papéis.

E os pássaros detrás de grades de chuva.
E os mortos em redoma de cânfora.

(E uma canção tão bela!)

Tanto que fazer!
E fizemos apenas isto.
E nunca soubemos quem éramos,
nem pra quê.

SONHOS DE MENINA

A flor com que a menina sonha
esta no sonho?
ou na fronha?
A lua com que a menina sonha
é o lindo do sonho
ou a lua da fronha?

CANÇÃO EXCÊNTRICA

Ando à procura de espaço
para o desenho da vida.
Em números me embaraço
e perco sempre a medida.
Se penso encontrar saída,
em vez de abrir um compasso,
protejo-me num abraço
e gero uma despedida.

Se volto sobre o meu passo,
é já distância perdida.

Meu coração, coisa de aço,
começa a achar um cansaço
esta procura de espaço
para o desenho da vida.
Já por exausta e descrida
não me animo a um breve traço:
- saudosa do que não faço,
- do que faço, arrependida.

Cecília Meireles
MEIRELES, C. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2001.

Noções

Entre mim e mim, há vastidões bastantes
para a navegação dos meus desejos afligidos.

Descem pela água minhas naves revestidas de espelhos.
Cada lâmina arrisca um olhar, e investiga o elemento que a atinge.

Mas, nesta aventura do sonho exposto à correnteza,
só recolho o gosto infinito das respostas que não se encontram.

Virei-me sobre a minha própria experiência, e contemplei-a.
Minha virtude era esta errância por mares contraditórios,
e este abandono para além da felicidade e da beleza.

Ó meu Deus, isto é minha alma:
qualquer coisa que flutua sobre este corpo efêmero e precário,
como o vento largo do oceano sobre a areia passiva e inúmera...

Desfaze-te da vaidade triste de falar.
Pensa,completamente silencioso,
Até a glória de ficar silencioso,
Sem pensar.

COMPRAS DE NATAL

São as cestinhas forradas de seda, as caixas transparentes, os estojos, os papéis de embrulho com desenhos inesperados, os barbantes, atilhos, fitas, o que na verdade oferecemos aos parentes e amigos. Pagamos por essa graça delicada da ilusão. E logo tudo se esvai, por entre sorrisos e alegrias. Durável — apenas o Meninozinho nas suas palhas, a olhar para este mundo.

Gargalhada

Homem vulgar! Homem de coração mesquinho!
Eu te quero ensinar a arte sublime de rir.
Dobra essa orelha grosseira, e escuta
o ritmo e o som da minha gargalhada:

Ah! Ah! Ah! Ah!
Ah! Ah! Ah! Ah!

Não vês?
É preciso jogar por escadas de mármores baixelas de ouro.
Rebentar colares, partir espelhos, quebrar cristais,
vergar a lâmina das espadas e despedaçar estátuas,
destruir as lâmpadas, abater cúpulas,
e atirar para longe os pandeiros e as liras...

O riso magnífico é um trecho dessa música desvairada.

Mas é preciso ter baixelas de ouro,
compreendes?
— e colares, e espelhos, e espadas e estátuas.
E as lâmpadas, Deus do céu!
E os pandeiros ágeis e as liras sonoras e trêmulas...

Escuta bem:

Ah! Ah! Ah! Ah!
Ah! Ah! Ah! Ah!

Só de três lugares nasceu até hoje essa música heróica:
do céu que venta,
do mar que dança,
e de mim.

Leveza

Leve é o pássaro:
e a sua sombra voante,
mais leve.

E a cascata aérea
de sua garaganta,
mais leve.

E o que se lembra, ouvindo-se
deslizar seu canto,
mais leve.

E o desejo rápido
desse mais antigo instante,
mais leve.

E a fuga invisível
do amargo passante,
mais leve.

Cecília Meireles
MEIRELES, C. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2001.

De tanto olhar para longe,
não vejo o que passa perto,
meu peito é puro deserto.
Subo monte, desço monte.

Eu ando sozinha
ao longo da noite.
Mas a estrela é minha.

ATÉ QUANDO TERÁS, MINHA ALMA, ESTA DOÇURA

Até quando terás, minha alma, esta doçura,
este dom de sofrer, este poder de amar,
a força de estar sempre _ insegura _ segura
como a flecha que segue a trajetória obscura,
fiel ao seu movimento, exata em seu lugar...?