Adélia Prado

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Dor não tem nada a ver com amargura.
Acho que tudo que acontece é feito pra gente aprender cada vez mais.
É pra ensinar a gente a viver.

O que precisa nascer

tem sua raiz em chão de casa velha.

À sua necessidade o piso cede,

estalam rachaduras nas paredes,

os caixões de janela se desprendem.

O que precisa nascer

aparece no sonho buscando frinchas no teto,

réstias de luz e ar.

Sei muito bem do que este sonho fala

e a quem pode me dar

peço coragem.

Deus de vez em quando me tira a poesia e eu olho pedras e vejo pedras mesmo...

Meu coração bate desamparado

Meu coração bate desamparado
onde minhas pernas se juntam.
É tão bom existir!
Seivas, vergônteas, virgens,
tépidos músculos
que sob as roupas rebelam-se.
No topo do altar ornado
com flores de papel e cetim
aspiro, vertigem de altura e gozo,
a poeira nas rosas, o afrodisíaco
incensado ar de velas.
A santa sobre os abismos-
à voz do padre abrasada
eu nada objeto,
lírica e poderosa.

Os diamantes são indestrutíveis?
Mais é meu amor.
O mar é imenso?
Meu amor é maior,
mais belo sem ornamentos do que um campo de flores.
Mais triste do que a morte,
mais desesperançado do que a onda batendo no rochedo,
mais tenaz que o rochedo.
Ama e nem sabe mais o que ama.

Eu tenho a esperança que nada se perde,
tudo alguma coisa gera...
O que parece morto, aduba...
O que parece estático, espera.

Ensinamento

Minha mãe achava estudo a coisa mais fina do mundo. Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão, ela falou comigo:
“Coitado, até essa hora no serviço pesado”.
Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor. Essa palavra de luxo.

A SERENATA

Uma noite de lua pálida e gerânios
ele viria com boca e mãos incríveis
tocar flauta no jardim.
Estou no começo do meu desespero
e só vejo dois caminhos:
ou viro doida ou santa.
Eu que rejeito e exprobro
o que não for natural como sangue e veias
descubro que estou chorando todo dia,
os cabelos entristecidos,
a pele assaltada de indecisão.
Quando ele vier, porque é certo que vem,
de que modo vou chegar ao balcão sem juventude?
A lua, os gerânios e ele serão os mesmos
— só a mulher entre as coisas envelhece.
De que modo vou abrir a janela, se não for doida?
Como a fecharei, se não for santa?

Em Português (excerto)

As línguas são imperfeitas
pra que os poemas existam
e eu pergunte donde vêm
os insetos alados e este afeto,
seu braço roçando o meu.

“Pior que medo de alma do outro mundo é o medo da alma do mundo do outro” –

AMOR VIOLETA

O amor me fere é debaixo do braço,
de um vão entre as costelas.
Atinge meu coração é por esta via inclinada.
Eu ponho o amor no pilão com cinza
e grão de roxo e soco. Macero ele,
faço dele cataplasma
e ponho sobre a ferida.

Adélia Prado
PRADO, A. Bagagem. Rio de Janeiro: Record. 2011. p. 83

Às vezes acho que nasci na década errada. Tenho princípios que já se perderam e amo coisas que já não se dá mais valor.

“DEUS É MAIS BELO QUE EU.
E NÃO É JOVEM.
ISTO SIM, É CONSOLO.”

Não tenho tempo para nada, ser feliz me consome muito!

Adélia Prado
Poesia Reunida. Rio de Janeiro: Record, 2015.

Nota: Adaptação de uma frase de Adélia Prado, do poema A Criatura. A citação costuma ser erroneamente atribuída a Clarice Lispector.

...Mais

“A vida é muito bonita,
basta um beijo
e a delicada engrenagem movimenta-se,
uma necessidade cósmica nos protege.”

Eu te amo, homem, hoje como toda vida quis e não sabia, eu que já amava de extremoso amor o peixe, a mala velha, o papel de seda e os riscos de bordado, onde tem o desenho cômico de um peixe — os lábios carnudos como os de uma negra.

Divago, quando o que quero é só dizer te amo.

Teço as curvas, as mistas e as quebradas, industriosa como abelha, alegrinha como florinha amarela, desejando as finuras, violoncelo, violino, menestrel e fazendo o que sei, o ouvido no teu peito pra escutar o que bate. Eu te amo, homem, amo o teu coração, o que é, a carne de que é feito, amo sua matéria, fauna e flora, seu poder de perecer, as aparas de tuas unhas perdidas nas casas que habitamos, os fios de tua barba.

Esmero. Pego tua mão, me afasto, viajo pra ter saudade, me calo, falo em latim pra requintar meu gosto:

"Dize-me, ó amado da minha alma, onde apascentas o teu gado, onde repousas ao meio-dia, para que eu não ande vagueando atrás dos rebanhos de teus companheiros".

Aprendo. Te aprendo, homem. O que a memória ama fica eterno. Te amo com a memória, imperecível.

Te alinho junto das coisas que falam uma coisa só: Deus é amor. Você me espicaça como o desenho do peixe da guarnição de cozinha, você me guarnece, tira de mim o ar desnudo, me faz bonita de olhar-me, me dá uma tarefa, me emprega, me dá um filho, comida, enche minhas mãos.

Eu te amo, homem, exatamente como amo o que acontece quando escuto oboé. Meu coração vai desdobrando os panos, se alargando aquecido, dando a volta ao mundo, estalando os dedos pra pessoa e bicho.

Amo até a barata, quando descubro que assim te amo, o que não queria dizer amo também, o piolho.

Assim, te amo do modo mais natural, vero-romântico, homem meu, particular homem universal.

Tudo que não é mulher está em ti, maravilha.

Como grande senhora vou te amar, os alvos linhos,a luz na cabeceira, o abajur de prata; como criada ama, vou te amar, o delicioso amor: com água tépida, toalha seca e sabonete cheiroso, me abaixo e lavo teus pés, o dorso e a planta deles eu beijo.

[...] É uma casa de esquina, indestrutível.
Moro nela quando me lembro,
quando quero acendo o fogo,
as torneiras jorram,
eu fico esperando o noivo,na minha casa aquecida.
Não fica em bairro esta casa
infensa à demolição.
Fica num modo tristonho de certos entardeceres,
quando o que um corpo deseja é outro corpo para escavar.
Um ideia de exílio e túnel.

(Poema 'a casa')

[...]
"Ó pai, duro é este discurso, quem poderá entendê-lo?"
Se abrisse um sol sobre este dia incômodo,
eu rapava com enxada os excrementos,
punha fogo no lixo
e demarcava mais fácil os contornos da vida [...]

(Poema 'discurso')

Me apanho composta.[...]
Nem uma seta consigo pintar na estrada.[...]
Ô Deus, eu digo enraivada,
esmurrando o ar com meu murrinho de fêmea.[...]
Um preto no cruzamento
olhava atentamente para o fim dos tempos.
Eu olho meu olho fixo.
Como se não houvesse cantochão nem monges.

(Frases do poema 'ruim')

Uma necessidade cósmica nos protege

De onde vens, graça que me perdoa desta tristeza, desta nódoa na roupa, da pele rachada em bolhas. De onde vens, certeza de que um pouco mais de açúcar não fará a ninguém?

A CASA
É um chalé com alpendre, forrado de hera. Na sala, tem uma gravura de Natal com neve. Não tem lugar pra esta casa em ruas que se conhecem. Mas afirmo que tem janelas, claridade de lâmpada atravessando o vidro, um noivo que ronda a casa — esta que parece sombria — e uma noiva lá dentro que sou eu. É uma casa de esquina, indestrutível. Moro nela quando lembro, quando quero acendo o fogo, as torneiras jorram, eu fico esperando o noivo, na minha casa aquecida. Não fica em bairro esta casa infensa à demolição. Fica num modo tristonho de certos entardeceres, quando o que um corpo deseja é outro corpo pra escavar. Uma ideia de exílio e túnel.
(Extraído do livro em PDF: O coração disparado [recurso eletrônico] / Adélia Prado. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Record, 2013. recurso digital – Página 10)

A Treva

Me escolhem os claros do sono
engastados na madrugada,
a hora do Getsêmani.
São cruas claras visões
às vezes pacificadas,
às vezes o terror puro
sem o suporte dos ossos,
que o dia pleno me dá.
A alma desce aos infernos,
a morte tem seu festim.
Até que todos despertem
e eu mesma possa dormir,
o demônio come a seu gosto,
o que não é Deus pasta em mim.

Texto extraído do livro "Figuras do Brasil 80 Autores em 80 Anos de Folha", Editora PUBLIFOLHA - folha de São Paulo,27/6/1982, pág. 232.

Esconder-se no porão, de vez em quando, é necessidade vital. Precisamos de silêncio e solidão, e, não, apenas os poetas. Senão, corremos o perigo de nos esvairmos em som, fúria e esterilidade. O campo para que a palavra se instale para o autor e para o leitor é o campo do silêncio e da audição.

(Em jornal 'O Tempo', 16 de outubro de 2010)

“Estou com saudade de Deus,
uma saudade tão funda que me seca”.

( do livro "O coração disparado", em "Poesia reunida". 10ª ed., São Paulo: Siciliano, 2001, p. 213.)