Viviane Mosé

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RECEITA PARA LAVAR PALAVRA SUJA

Mergulhar a palavra suja em água sanitária.
depois de dois dias de molho, quarar ao sol do meio dia.
Algumas palavras quando alvejadas ao sol
adquirem consistência de certeza. Por exemplo a palavra vida.

Existem outras, e a palavra amor é uma delas,
que são muito encardidas pelo uso, o que recomenda esfregar e bater insistentemente na pedra, depois enxaguar em água corrente.

São poucas as que resistem a esses cuidados, mas existem aquelas.
Dizem que limão e sal tira sujeira difícil, mas nada.
Toda tentativa de lavar a piedade foi sempre em vão.

Agora nunca vi palavra tão suja como perda.
Perda e morte na medida em que são alvejadas
soltam um líquido corrosivo, que atende pelo nome de amargura,que é capaz de esvaziar o vigor da língua.

O aconselhado nesse caso é mantê-las sempre de molho
em um amaciante de boa qualidade. Agora, se o que você quer é somente aliviar as palavras do uso diário, pode usar simplesmente sabão em pó e máquina de lavar.

O perigo neste caso é misturar palavras que mancham
no contato umas com as outras.
Culpa, por exemplo, a culpa mancha tudo que encontra e deve ser sempre alvejada sozinha.

Outra mistura pouco aconselhada é amizade e desejo, já que desejo, sendo uma palavra intensa, quase agressiva, pode, o que não é inevitável, esgarçar a força delicada da palavra amizade.

Já a palavra força cai bem em qualquer mistura.
Outro cuidado importante é não lavar demais as palavras
sob o risco de perderem o sentido.

A sujeirinha cotidiana, quando não é excessiva,
produz uma oleosidade que dá vigor aos sons.

Muito importante na arte de lavar palavras
é saber reconhecer uma palavra limpa.

Conviva com a palavra durante alguns dias.
Deixe que se misture em seus gestos, que passeie
pela expressão dos seus sentidos. À noite, permita que se deite, não a seu lado mas sobre seu corpo.

Enquanto você dorme, a palavra, plantada em sua carne,
prolifera em toda sua possibilidade.

Se puder suportar essa convivência até não mais
perceber a presença dela, então você tem uma palavra limpa.

Uma palavra LIMPA é uma palavra possível.

Prosa Patética



Nunca fui de ter inveja, mas de uns tempos pra cá tenho tido.
As mãos dadas dos amantes tem me tirado o sono.
Ontem, desejei com toda força ser a moça do supermercado.
Aquela que fala do namorado com tanta ternura.
Mesmo das brigas ando tendo inveja.

Meu vizinho gritando com a mulher, na casa cheia de crianças,
Sempre querendo, querendo.

Me disseram que solidão é sina e é pra sempre.

Confesso que gosto do espaço que é ser sozinho.

Essa extensão, largura, páramo, planura, planície, região.

No entanto, a soma das horas acorda sempre a lembrança

Do hálito quente do outro. A voz, o viço.

Hoje andei como louca, quis gritar com a solidão,

Expulsar de mim essa Nossa Senhora ciumenta.

Madona sedenta de versos. Mas tive medo.

Medo de que ao sair levasse a imensidão onde me deito.

Ausência de espelhos que dissolve a falta, a fraqueza, a preguiça.

E me faz vento, pedra, desembocadura, abotoadura e silêncio.

Tive medo de perder o estado de verso e vácuo,

Onde tudo é grave e único. E me mantive quieta e muda.

E mais do que nunca tive inveja.

Invejei quem tem vida reta, quem não é poeta

Nem pensa essas coisas. Quem simplesmente ama e é amado.

E lê jornal domingo. Come pudim de leite e doce de abóbora.

A mulher que engravida porque gosta de criança.

Pra mim tudo encerra a gravidade prolixa das palavras: madrugada, mãe, Ônibus, olhos, desabrocham em camadas de sentido,

E ressoam como gongos ou sinos de igreja em meus ouvidos.

Escorro entre palavras, como quem navega um barco sem remo.

Um fluxo de líquidos. Um côncavo silêncio.

Clarice diz que sua função é cuidar do mundo.

E eu, que não sou Clarice nem nada, fui mal forjada,

Não tenho bons modos nem berço.

Que escrevo num tempo onde tudo já foi falado, cantado, escrito.

O que o silêncio pode me dizer que já não tenha sido dito?

Eu, cuja única função é lavar palavra suja,

Neste fim de século sem certezas?

Eu quero que a solidão me esqueça.

Doenças
Muitas doenças que as pessoas têm são poemas presos
abscessos tumores nódulos pedras são palavras
calcificadas
poemas sem vazão
mesmo cravos pretos espinhas cabelo encravado
prisão de ventre poderia um dia ter sido poema
pessoas às vezes adoecem de gostar de palavra presa
palavra boa é palavra líquida
escorrendo em estado de lágrima
lágrima é dor derretida
dor endurecida é tumor
lágrima é alegria derretida
alegria endurecida é tumor
lágrima é raiva derretida
raiva endurecida é tumor
lágrima é pessoa derretida
pessoa endurecida é tumor
tempo endurecido é tumor
tempo derretido é poema
palavra suor é melhor do que palavra cravo
que é melhor do que palavra catarro
que é melhor do que palavra bílis
que é melhor do que palavra ferida
que é melhor do que palavra nódulo
que nem chega perto da palavra tumores internos
palavra lágrima é melhor
palavra é melhor
é melhor poema

"O Homem precisa de algum conhecimento pra sobreviver,
mas pra VIVER precisa da ARTE."

"Eu poderia chorar de coisas assim:
Corre um rio de minha boca, corre um rio de minhas mãos.
Dos meus olhos corre um rio.
Na verdade sofro de excessos, que me dão certo vocabulário
Como derramar, escorrer, atravessar.
Tenho a impressão de que tudo vaza em sobras.
Tenho dificuldade em caber.
Pra caber mais, derramo por nada, derramo sem motivo.
Vou acalmar meu excesso pensei (...)
Palavras são estacas fincadas ao chão.
Pedras onde piso nessa imensa correnteza que atravesso."

Gente é mais ou menos como rio:
Tem os que gostam de perigo e se lançam de grandes alturas
Tem os de muitos braços que atiram pra todos os lados
Tem os de muitos redemoinhos que comem bois e gente
Tem os que gostam demais de si e viram lago
Tem os que só sabem correr parados
São os empoçados os pantaneiros os alagados
Tem os que transam com a terra formando ilhas
O fundo de alguns é de pedra. Tem os de peixes coloridos
Outros têm água clarinha. E tem gente córrego seco
E tem gente riacho escuro. Alguns a terra engole vivos
E tem até rio que corre pra trás
O rio que eu sou nasceu em janeiro

Revelação

Eu queria dizer uma coisa que eu não posso sair dizendo por aí.
É um segredo que eu guardo, é uma revelação
Que eu não posso sair dizendo por aí.
É que eu tenho medo de que as pessoas se desequilibrem delas mesmas.
Que elas caiam quando eu disser.
É que eu descobri que a palavra não sabe o que diz.
A palavra delira. A palavra diz qualquer coisa.
A verdade é que a palavra, ela mesma, em si própria, não diz nada.
Quem diz é o acordo estabelecido entre quem fala e quem ouve.
Quando existe acordo existe comunicação,
Mas quando esse acordo se quebra ninguém diz mais nada, Mesmo usando as mesmas palavras.

A solidão é a base da dignidade.

Pensar só nasce da sua ignorância

Em minha casa, tudo tem sentido, tudo me traz referências. Gosto de comprar coisas e arrumá-las em torno de mim. Assim, quando me perco, a casa me situa.

A dor da alma nada mais é do que seus limites se rasgando para caber mais mundo.

Se o homem é o único animal que sabe que vai morrer, ele também é o único que incessantemente cria, interfere, produz.

Inserida por O_Mestre

O homem é um ser que cria valores, e a consciência da morte instaura o primeiro valor: a vida.

Tudo que nasce tende a morrer para que a vida continue. É porque sabemos que vamos morrer que temos urgência de viver.

Viviane Mosé
O homem que sabe: do homo sapiens à crise da razão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.
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É porque sentimos dor que valorizamos tanto a alegria. Além do mais, não há um ser humano que não tenha vivido a dor. E se houvesse, ele não saberia também o que é alegria.

Palavra suja

Liberdade é saber lidar com os limites

⁠Não lidamos bem com a contradição porque temos a alma rasa, estreita. Almas amplas amam as contradições porque geram vida, força, ação. Não precisamos resolver as contradições, podemos mantê-las vivas, quentes em nós.